confissões de uma mente sem lembranças
(ou brilho eterno de uma mente perigosa)

quarta-feira, dezembro 14, 2005

Um dia

Inventaram de marcar minha consulta para 9h30 em Santa Cruz, aquela que é tipo a antepenúltima estação do metrô nos confins da zona sul. Minha única certeza era de que tinha sono. Cochilei antes e depois de fazer a baldeação. Acordei na estação Jardim São Paulo, aquela que é tipo a antepenúltima estação do metrô nos confins da zona norte. Como o que não tem remédio remediado está, conforme dita a enciclopédia dos chavões, aproveitei para dormir na volta aos confins da zona sul.

Três cafés depois, no trabalho, uma fração burra de segundos me fez recusar um convite para almoçar em nome de um pacote de polvilhos. Foi quando eu soube que estavam dando uns livros de jabá na Bravo. Eram daqueles que ninguém quer, e por isso encontrei preciosidades. Como um policial de Aguinaldo Silva e outro que salvou meu humor pelo resto do dia: A História Verdadeira, de Michael Finkel. Aconteceu mesmo: Finkel foi demitido do New York Times Magazine por inventar uma história e estava prestes a ver seu nome de jornalista ir nacionalmente por água abaixo quando descobriu que seu nome de jornalista estava de certa maneira internacionalmente na sarjeta _era o codinome usado por assassino para se esconder no México. Só li 50 páginas e é cedo pra dizer que me lembra Truman Capote, mas eu tendo mesmo a exagerar.

Eu não tinha nem folheado o livro quando descobri que o poder do estufamento dos polvilhos arrefecia conforme se aproximava a hora da reunião com os chefes. No meio deles, na sala abafada e silenciosa, ouvi meu estômago roncar. As discussões se estendiam. Ninguém sabia como "aproximar a revista do assinante". Entre um e outro ronco do estômago, tive uma idéia e falei. Uma, duas, três vezes. A sala não estava mais silenciosa, e a chefia, entretida em suas discussões, não me ouviu. Porque sou pobre e faminta. Resolvi tomar uma atitude e comecei a desenhar carinhas no bloco para passar o tempo.

O tempo estava passando quando outra pessoa deu uma idéia. A minha idéia. Aquela de antes das carinhas no bloco. E a minha idéia que a outra pessoa deu foi considerada genial por todo mundo. Fiquei desnorteada. Os outros enaltecendo a minha idéia que a outra pessoa deu depois de mim foi um estupro. A minha idéia não era mais minha. Quando meu norte voltou, a fome veio também, e não havia carinha no bloco que fizesse o tempo passar.

Na volta pra casa, começou a chover. Desci do ônibus perto da Paulista para pegar outro, mas era tanta água que achei mais seguro ficar por ali um tempo. Claro que estava errada. Para um filme, seria clichê: passou um ônibus na pista de trás e me encharcou dos pés ao meio das costas. A sorte foi o meu livro do jornalista maluco, que me distraiu como um mantra saudável. Resolvi pegar um ônibus e descer na Amaral Gurgel, movida pela insensatez de um estômago (ainda) vazio. Ao descer, me vi presa pela chuva entre mendigos debaixo do Minhocão. Faminta no meio da fome e lendo o livro do jornalista maluco. Salva por uma velhinha fofa que ofereceu carona de guarda-chuva, preocupada com minha doce figura de mocinha ingênua no meio dos mendigos malvados do Minhocão.

Cheguei a uma padoca, pedi uma cerveja, um PF, acendi um cigarro, reabri o livro e achei tudo aquilo ótimo. Assim que a chuva diminuiu, fui pra casa escondendo os livros na sacola furada que a moça da padoca me deu, batendo os dentes de frio, tipo caveirinha, com a bexiga num estado que estendia infinitamente o caminho, e achei tudo aquilo péssimo.

Agora estou aqui quentinha, prestes a dormir o sono que a semana inteira me roubou.

E o que foi mesmo que me tirou o bom humor durante o dia?