confissões de uma mente sem lembranças
(ou brilho eterno de uma mente perigosa)

sábado, setembro 08, 2007

Construção

Dava para saber com horas de antecedência se vinha chuva. Um segredo milenar desconhecido da meteorologia: podíamos enxergar, a perder de vista, as nuvens se formando. Víamos também, longe, a praça do Relógio, e outras cujo nome ignoro esparramadas pela Vila Madalena, com a linha do trem entre uma e outras. No sol eu só reparava quando ele se punha, porque o céu enchia de cores. Não aquela coisa Blade Runner que cobria o Jaguaré, mas tonalidades que, dizíamos, dariam um belo pôster na parede quando a vista fosse embora.

É, a gente sabia desde o começo que era um cenário temporário. Estava escrito em letras subliminares no contrato; um desconto generoso para compensar a consciência de que, terminado o barulho da obra em frente, não teríamos mais meia cidade enquadrada nas janelas. Ainda assim, o lugar cabia no que queríamos, então assinamos embaixo e rubricamos todas as páginas de todas as vias para não deixar dúvida.

Mas ver um terreno baldio fermentar até virar arremedo de prédio é penoso quando ele fica na contramão entre você e o resto. Por meses, olhar pela janela foi calcular o que sobraria no campo de visão. Fiz projeções otimistas em que vislumbraria algo pelas laterais. Vesti causas trabalhistas e listei razões para uma greve operária. Vez ou outra pensei em ligar para a polícia, quando os batuques começavam num sábado de manhã cedo ou se estendiam pela noite, não (só) porque o barulho incomodasse, mas pela noção de que a evolução dele me roubaria a vista. Quis estudar leis de zoneamento e pedir o embargo da obra.

Não fiz nada disso. Porque, mesmo antes de praças e céu sumirem atrás de tijolos num desenho lógico, eu estava ocupada vendo a construção.

Faz uns meses que o sol não põe os pés na sala, e não me lembro de ter aproveitado quando ele alcançava uns metros cômodo adentro. Talvez a gata sinta falta, embora eu não esteja muito certa de que ela tenha memória para isso (também não estou certa de que ela se lembraria de mim caso eu ficasse umas semanas fora).

Hoje penso aqui com meu teclado que meus cálculos se acabaram no chão feito um pacote flácido. O prédio está exatamente como estaria caso eu não tivesse passado horas pensando em como evitar que ele estivesse ali. Mas, enquanto lá fora faz sol e a gata se espreguiça na sacada, enquanto a Roberta Sá canta que sua alegria voltou e ele lê jornal no sofá, numa sala que a despeito de tudo terá sempre um ar de sábado de manhã (tá, exceto à noite), eu posso fazer posts de auto-ajuda como este e ver tudo o que realmente importa.

3 Comments:

Blogger Fernando Brito said...

É... é uma cunha. Entre o que é e o que deveria ser.

Mas há piores. Estou vendo uma agora mesmo. E o fato de ser cria do Niemeyer não ajuda em nada.

10/9/07 1:57 AM

 
Blogger raq c. said...

moço das bulas, vou te mostrar o link de como o prédio em frente vai ficar pra você valorizar a sua vizinhança.

pra piorar, é a bunda do prédio que vai ficar virada pra gente. mas meu prédio faria o mesmo se pudesse ficar na frente do prédio em frente!

11/9/07 12:26 AM

 
Anonymous Anônimo said...

Creio que, ... hum... não sei, mas a quela coisa do tempo sendo reflexo de nossas dúvidas. Falta luz! não muita viu?
PS: Nunca fui o dono do Canis, sempre foram os que lá estavam, é que eu tenho mais tempo para aquilo, hehehe

11/9/07 1:39 AM

 

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