confissões de uma mente sem lembranças
(ou brilho eterno de uma mente perigosa)

quarta-feira, abril 12, 2006

Picuinhas

Quem não tem o poder de transformar 24 horas em uma temporada precisa de método para fazer mais coisas do que o relógio deixa. Foi por isso que eu, pessoa sem capacidade metódica, fiquei feliz ao ter uma reles idéia que permitiria um aproveitamento fantástico de tempo num dia impossível.

Eu precisava tirar umas xerox enormes e achava que não conseguiria porque saio da faculdade voando para o trabalho. Então pensei: no intervalo da aula, passaria na xerox para pedir cópias do monte de textos que o professor deixou na pasta. Correria para a biblioteca da outra faculdade, no prédio ao lado, para mandar xerocar uma tese de lá. Deixaria tudo pago e voltaria para a sala. Uns dez minutos depois, daria uma saída como quem vai atender a uma ligação para pegar as primeiras xerox, perto da sala, e sem as filas dos intervalos. De volta à classe, esperaria meia hora, tempo em que a lista de presença chegaria a mim, e estaria livre para pegar o outro texto na biblioteca a tempo de me enfiar num táxi e chegar no trabalho... Tá, meio atrasada. Era um plano cheio de futuros do pretérito, mas tudo estava dando certo. Às 11h30, juntei minhas coisas e saí da aula para a última pendência.

Cheguei na biblioteca e lembrei que não poderia entrar com as bolsas. O responsável pelos armários era um baixote magrelo com cabelo lambido e cara de poucos amigos, mas se tivesse aquela cara eu também teria poucos amigos. Fui até ele com minha expressão mais sofrida. "Por favor, tenho de ir na xerox pegar um texto, já está pago, é coisa de dez segundos, posso deixar minhas bolsas aqui em cima do balcão?".

Ele me olhou com toda aquela cara infeliz que a natureza lhe deu. E fez um não lento, silencioso. E, tenho certeza, prazeroso. Por seu emprego de merda permitir lampejos de infelicidade em pessoas com menos azar na vida. Insisti. Não deu jeito. "Preciso da identidade para dar a chave de um armário, se você quiser entrar", respondeu.

Bufei, revirei os olhos e dei a identidade. Ele enrolou, enrolou, teve a manha de demorar até para decidir que chave pegar. Arranquei da mão dele, fui que nem criança batendo os pés no caminho até o armário, bati a porta, bati os pés até a xerox. Peguei as cópias e, na volta, pensei: "Deixo a chave como se não tivesse rolado nada?". Catei minhas bolsas e fui até o balcão. A chave fervendo na mão. Três metros, dois...

E joguei a chave no balcão. Não me pergunte: eu não pensei, apenas joguei. Ela foi deslizando, bonita, por todo o balcão, lentamente, indo, indo... Até cair no chão, do outro lado. Achei que estava mal-educado o bastante. Não precisava dizer nada. Virei e saí. Gostei de pensar que ele teria de levantar a bunda da cadeira, cheio de rancorzinho, para pegar a chave no chão. Enquanto ia embora, congratulei-me por aquele desaforo de quem não engole sapos, pela pequena resposta às picuinhas do mundo. Como se ela se estendesse a todos os infelizes que ficam felizes ao atrapalhar os outros. Senti um lampejo de felicidade.

Aí lembrei que tinha deixado minha identidade com ele.

10 Comments:

Blogger Fernando Brito said...

Poupatempo, oras! Ele que enfie a sua identidade no armário!

14/4/06 7:03 PM

 
Anonymous Anônimo said...

Misericórdia!!!!

15/4/06 8:21 PM

 
Anonymous Anônimo said...

Documento da para fazer de novo ne, encontrei teu blog por acaso gostei muito dele, tenho um blog comecando, espero sua visita la

16/4/06 7:40 PM

 
Anonymous Anônimo said...

fê, eu poupei tempo E orgulho: fui lá pegar. vai saber o que a pessoa sem amigos poderia fazer com minha identidade!

16/4/06 10:52 PM

 
Blogger Olheiro da Desgraça said...

Imagino isso acontecendo comigo:

Eu (com cara de psicopata, depois de voltar): - Esqueci minha identidade.
O cara: - Vc foi mal educado...
Eu (com mais cara de psicopata ainda): - Tô com pressa e tô nervoso. Dá a identidade!
Acho que ele não criaria mais problemas.

17/4/06 7:45 PM

 
Anonymous Anônimo said...

ei, você não estava em buenos?
me escreve!

17/4/06 8:58 PM

 
Anonymous Anônimo said...

uma salva de palmas pras meninas malvadas...
weeeeeeeeeeeeeeeee!!!

17/4/06 10:13 PM

 
Anonymous Anônimo said...

acho que sei quem é o mala. hoje fui pegar trocentos livros na biblioteca. na saída, estiquei a chave para o ser infeliz. ele ficou uns bons 10 segundos me encarando, tentando fazer uma cara de mau, porque eu não havia esticado a mão (e a chave) o suficiente para que ele não precisasse tirar a bunda da cadeira... arranquei meu RG da mão dele com um sorrisinho sarcástico. agora devo estar do seu lado na lista negra da biblioteca, hahahaha

20/4/06 5:08 PM

 
Anonymous Anônimo said...

anônimo nada, fui eu!!!!!!

20/4/06 5:09 PM

 
Anonymous Anônimo said...

marcão, o diálogo foi mais ou menos assim:
- me dá minha identidade (fingindo ser algo absolutamente normal)
- (uns segundos de silêncio, olhando para a minha cara) você não precisava ter jogado no chão.
- eu não joguei, caiu. me dá minha identidade.

mas eu tinha perdido a moral no segundo em que saí e deixei o RG lá. imaginei ele dando um riso interno assim que me viu indo embora sem levar.

ingrid, palmas? parabéns pelo mico? hahahahah

sil, que bom, isso me faz pensar que toda uma população universitária deseja a ele uma morte lenta e dolorosa. ou só a gente é doente, hahaha

20/4/06 5:49 PM

 

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